top of page

Moraria em Milão



Com esse delicioso texto, “Do Rio pra cá” recebe a escritora Marta Pessoa. Ela conta sobre a sua experiência em Milão, Itália.


“Milão é cavilosa. Sedutora como o Rio, faz a gente achar que não há do que reclamar.


Milão é um lugar todo trabalhado no design. Uma volta por Brera (pinacoteca na foto acima) ou em Naviglio Grande, pelos corsos do quadrilátero chique, ou andando nos centenários bondinhos amarelos (foto abaixo), “corujando” em volta da estação central, dá para gente fazer um intensivão no estado da arte da moda. Nos vários tipos de moda: na de rua, na oferecida em lojas bacanas e inacessíveis a viajantes brasileiras aposentadas, nas tendências incompreensíveis exibidas em vitrines montadas por alguém que já veio ao mundo com o DNA de artista italiano.



Milão é um perpétuo desfile de moda a céu aberto. Um museu ao ar livre. Um prato cheio para quem se diverte só olhando o “vucovuco” da cidade, para uma praticante de voyeurismo turístico, como eu.


Tento inventar as histórias dos passantes ou decifrar as mensagens que emitem ao se vestir, como andam, o que calçam; dando pinta de quem querem ser, protestando, militando ou, simplesmente, vivendo a rotina.



Observo as roupas, os cabelos, as mochilas, bolsas, sapatos (neste quesito os tênis merecem um post à parte), os óculos e, quando passam bem perto, registro o cheiro que exalam. Milão tem lojas de perfume fantásticas.


Adoro o povo exótico, que se veste sem se preocupar em seguir padrões, que nos presenteiam com um espetáculo de criatividade com combinações inusitadas. Vejo e aprecio. Faço fotos mas não devo publicar as mais explicativas. Sendo nordestina não posso deixar de mangar, também. Mango (do verbo mangar, não a loja) sem preconceito, carinhosamente. Mango e elogio, com isenção.



Quem é curioso ou interessado, depois de dois dias por lá, já começa a decifrar quem é turista ou morador, quanta bala na agulha tem a senhora que está usando uma roupa comprada depois que chegou ( a gente sabe que a roupa é nova porque já viu o modelito numa vitrine e até dá pra lembrar do preço afixado ).


Dá até mesmo para deduzir em que hotel foi possível se hospedar. Turistas descabelados, amarrotados, com roupa de frio às 2 da tarde, já dá uma pista de que seu hotel fica longe do bochicho e, por isto, sai cedo pra voltar só ao final do dia ou da noite.


Nada de dar uma chegadinha no hotel para adequar o figurino que foi escolhido quando a janela do quarto deixava entrar frio e o céu nublado não dava sinais de que o sol apareceria horas depois. Mesmo quem mora em São Paulo, cidade com as quatro estações durante o dia, tem dificuldade de adivinhar a roupa para encarar clima desconhecido.


As pessoas, as vitrines, as ruas, o contraste entre os monumentos antigos e os modernos, a luz e a vibe da cidade são uma festa.


Milão é plana, dá para passear horas sem se esbaforir. É fácil se locomover usando metrô e bondes, o bolso agradece não precisar de táxis. A culinária agrada e engorda demais. Os desaforos chegam a ser divertidos. O clima é de férias.



E a gente acha que se comunica muito bem, que eles entendem nosso italiano de turista quando, na verdade, eles são tolerantes com nosso portunhol. A empatia é que garante a conexão.

Milão tem um quê pitoresco: mulheres elegantérrimas andam de bicicleta usando sapatos de bico fino e salto alto, as de mais idade não se amedrontam em pedalar, às vezes até conversando na ciclovia. Homens vestem bermuda com paletó, calçando mocassins sem meia e ficam um charme.


Milão é sedutora. As igrejas são charmosas e criativas, vi umas gêmeas. As calçadas tomadas por mesas e cadeiras não aborrecem. Os museus são caros mas quem se importa. Os desaforos proferidos soam divertidos. Milão é cavilosa.


Onde chego me pergunto se moraria ali. Milão tem meu sim”.


Fotos: Acervo Pessoal

 

Marta Pessoa nasceu na Paraíba e atualmente vive em São Paulo. Formada em Matemática, trabalhou como professora universitária no Brasil e no Chile. É autora de “Zignau, doze mulheres implacáveis e um homem em pânico” (2020), “É tempo de cuidar” (2017) e “Riacho Escuro” (2024). Foi finalista do concurso promovido pelo Ministério da Cultura para o prêmio Carolina Maria de Jesus (2023).

 

3 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page